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ARESTAS

ARESTAS

O quadro dentro do quadro ou a estrutura de quadros em abismo

Se com a arte abstracta a associação entre a realidade e a forma desapareceu definitivamente, o artista contemporâneo, herdeiro do longo caminho que conduziu à abstracção, confrontado com o passado artístico e, por um lado, com uma realidade violenta que se imiscua numa realidade fictícia ou encenada, reencontra uma linguagem simples, reencontra as formas sucintas explícitas, decalcadas de uma linguagem tão procurada para alcançar um efeito máximo, mas também reminiscentes de outra linguagem pictórica, onde se vislumbra as possibilidades do traço seguro, efectuado num sopro apenas, com tinta da China. Os efeitos e as consequências do mundo exterior são transmitidos do interior, são vistos desde casa. Esta casa pode ser a casa física onde se habita, pode ser a casa ideal que se constrói, mas também pode ser o próprio artista, isto é, o artista como sendo a sua própria casa, ou como procurando elucidar-se enquanto seu habitante. Habitar um espaço, é uma ideia vaga e muito abrangente, em particular no mundo actual, o artista contemporâneo está condenado a habitar-se e é do interior que se avista tudo. Recebi um pequeno caderno e um CD de dados com reproduções de quadros. Virei as páginas do caderno. Passei as páginas fictícias do documento em PDF. Mais tarde, movimentei os quadros pousados na mesa e no chão. O que delimita uma folha de papel? O que delimita o quadro? O que delimita uma casa? O que é o espaço da casa senão mais uma página? Virei as páginas voltei atrás, segui para a frente. O que delimita isso tudo são linhas bem precisas e concretas, mas o que contêm essas linhas, essas estruturas que nos envolvem? O espaço quadrangular de uma página, de uma quadro, de uma casa, de uma porta ou de uma janela é o nosso espaço físico, mas a nossa percepção, apesar de reconhecer os limites físicos e concretos, não obedece às formas geométricas traçadas à ângulos direitos, mais ou menos semelhantes, conforme o desejo de eficácia no uso dos instrumentos. Todos os quadros de Luís Rodrigues brandem a vontade de permanecer ao alcance do espectador de forma livre, pois não têm título, apenas as dimensões e os materiais aparecem como metatexto, isto é, um outro texto acerca da imagem inscrita que não deseja reconhecer-se numa etiqueta. Esta proposta abre o espaço de expectativa do espectador. Um título colocado numa tabuleta, numa vinheta acaba sempre por ocupar todo o espaço do quadro, apesar de normalmente ocuparem espaços físicos distintos e terem tamanhos distintos. O espectador da arte contemporânea, que está preocupado com a intenção do pintor, procura sempre confrontar a sua leitura à indicação, ao indício deixado pelo título da obra. Se por um lado, alguns autores já não optaram por um título evocador do trabalho realizado, procurando apenas criar estranhamento, outros procuraram enquadrar o seu trabalho num conjunto de um trabalho fornecido acerca de um único tema, ou ainda, por vezes, pretendem teorizar a obra, homenagear outro autor, etc., tecendo sempre um texto sobre outro. Todos estes textos são metatextos, pois falam acerca de outro texto que seria o próprio quadro e constituem o ponto de fuga do olhar, atestando a validade do mesmo. Se por um lado algumas indicações são fundamentais por razões de identificação e de estudo, por outro lado a maior liberdade é precisamente a de deixar ao espectador o espaço necessário para a sua visão. O quadro, depois de feito e exposto, é como o livro depois de entregue à editora, já não pertence ao seu autor, cabe ao espectador fazer a leitura, ter a visão do quadro. Não há proposta mais didáctica que aquela que consiste em ver e fazer o percurso da experiência estética. O artista expõe-se é esta a postura do artista contemporâneo: expor-se e assumir o peso da exposição, no sentido de ser visto, no sentido de se tornar um alvo. Contudo, se considerarmos o contexto histórico em que se cria, acredito que o artista contemporâneo é a seta e o alvo ao mesmo tempo.Recebi um livrinho de quadros pelo correio, virei as páginas, ao passar as páginas observei e vi as chuvas em pautas de Luís Rodrigues. São pautas de cinco ou quatro linhas, com manchas semelhantes a manchas poéticas, sobre um material simples, o cartão, e cores simples, o preto, o branco e o encarnado, e a escolha do vocábulo encarnado, em vez de vermelho não é inocente, são as cores da tradição dos pintores contemporâneos. São pautas, repetidas pacientemente, que apesar de se assemelharem a grades, não aprisionam, não limitam, não constrangem. O que há depois do quadro trabalhado e re – trabalhado? O regresso a cores básicas, cores ferramentas de todas as outras. Com o óleo não há matizes possíveis, é a sobreposição de camadas irremediáveis, é a dura realidade da pintura a óleo contemporânea, já não se deseja efeitos de luz, porque depois de cobrir tantas vezes a tela reencontramos as cores, o branco, o preto, o vermelho, contudo isto não imprime afastamento aos quadros, simplesmente, porque há a intimidade do quadro, a proximidade da casa que também é nossa. Algumas telas são urdidas de fios numa vontade de tecer algo mais para além do visível. Evoca a quietude e a paciência de uma Penélope invisível ainda que persistente, a tecer os laços de um desejo de uma casa ideal que apenas existe fragmentada. É esta a paciência da casa, que se faz e desfaz. Mas a casa que construímos pouco a pouco e onde estamos, essa casa somos apenas nós. Há sempre algo mais que a construção da casa no sentido abstracto e isto remete para o interior da casa, o que há dentro da casa? Como é possível a casa? Para isso, há que fazer o percurso geral, aquele que indica um caminho para entrar dentro da casa. O espaço das aguarelas é mais leve, simplesmente, porque o próprio material transmite essa leveza. Permanece o círculo e dentro do círculo a casa, e dentro da casa, exactamente, o que se encontra numa casa, sem ser os objectos do quotidiano, há o quotidiano em si. Formas simples, o quadrado ou o rectângulo, o oval ou o círculo, a cruz e a linha, pouco mais que formas simples, permitem também falar de coisas complicadas. Coisas que, fazendo parte da vida complexa do homem, ficam sempre por resolver. Porque apesar do que o rodeia ser semelhante, apesar do oval, do quadrado, apesar destas formas serem reiteradas, não há um padrão, não há um modelo que explique o que há dentro da casa, sem ser aquilo que mobila a casa e que não podemos ver. Uma estrutura sempre construída partindo da mesma forma, uma preocupação constante com a forma da casa que são tantas. Somos a nossa própria casa? Construir o nosso espaço dentro da casa parece ser a tarefa mais difícil, mas as formas arredondadasevocadoras de uma mulher preenche a casa toda. A casa são as ancas largas e acolhedoras que contêm e criam o resto da casa, onde o quotidiano remete par uma sequência narrativa, onde cada quadro ecoa o anterior, com a possibilidade de repetição ou como gerar casas, enquanto o momento efémero emerge na mancha que aparece como um ponto de referência do acaso. Construímos a nossa casa. Ana da Palma (Gazeta das Caldas,9/12/05)

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