Interlúdio (1)
Interlúdio (1) Durante aquele Outono, em Berlim, passeando pelas ruas de Kreutzberg, no céu, as nuvens tinham um nome...só estratos sobrepostos a estratos, um céu branco-acinzentado que se prolongava no céu escuro das longas noites. Eram dias tão frios que me entorpeciam os sentidos. Depois das quatro da tarde, diante da salamandra, na cozinha, falava-se do falecimento do muro, comia-se pão, queijo e bananas por mimetismo... Andava por Berlim, sozinha, sem ter alguém para pôr um nome nas coisas. As coisas com um nome perdem todo o verdadeiro sentido na memória dos sentidos. É preciso saber deambular numa cidade, perder-se nela, encorpar-se dela para guardar qualquer lembrança. Lembrei-me de Walter Benjamin que dizia que Paris lhe tinha ensinado a arte de se perder. Ainda tinha quatro tabletes de chocolate, uma moeda de um marco, umas luvas enormes multicolores e um sorriso maior que a distância entre Berlim e Paris. Acabei por apanhar uma boleia num camião espanhol. O condutor era da Estremadura, vivia numa aldeia da Serra Morena e seguia para França. Falámos muito do sol, da serra, das saudades que tinha da mulher e partilhámos o chocolate até aos subúrbios de Paris. Foi por causa dele que me apeteceu a luz do mediterrâneo. Pensei na luz e lembrei-me dos quadros que Zurbarán tinha feito de São Francisco. A luz que emanava dos rostos. Havia um quadro, em particular, não se via o rosto todo de São Francisco, toda a luz estava no nariz. Percorri mentalmente todos os narizes de que me lembrava. O nariz do meu avó no qual reconhecia o da minha mãe, o nariz perdido de um texto de Gogol, o nariz em gesso pintado de Giacometti, o nariz do meu pai no qual me reconheci, o nariz de Dorian Gray, o nariz de um amigo que contava, cada vez que conhecia alguém, que lhe tinham dado a alcunha de napias , no liceu francês de Madrid, a importância que Goethe deu ao nariz, como sendo pilar que suporta a abóbada formada pela testa, o nariz que incomoda de Cyrano, a máscara nariz do teatro, a outra dum filme...Fiz um esboço do meu roteiro do nariz que acabei por perder num autocarro entre David e Panamá. Lembrei-me da Serra Morena descrita no manuscrito de Potocki. Por causa do apelo que o mar mediterrâneo produz, lembrei-me da Andaluzia, do jamón de Jabugo, Sevilha e de uma rua estreita: calle del beso. Quando cheguei a casa, olhei para as paredes do muro do quarto atapetadas de mapas e rotas imaginárias. O norte de América até ao Panamá era uma dama muito apressada. Tinha um pé levantado que quase não se distinguia, estava perdido no Mar de Bering. Um braço curvado perdia-se no Oceano Árctico, o outro segurava as rendas de uma saia cuja ponta terminava e constituía, por um lado, a Baia do Hudson, por outro o Mar Lavrador. O outro pé terminava à fronteira entre Costa Rica e Panamá. Notava-se a sua pressa pelo movimento que fazia a sua saia. A América do Sul e o continente Africano eram duas máscaras viradas para o mesmo lado e com a mesma inclinação. Ambas olhavam para baixo com uma espécie de tristeza. A dama apressada continuava a sua corrida no sentido oposto ao olhar das máscaras. O resto do mundo era simplesmente o que se via no mapa. Voltei a pôr chocolate na minha mochila. Chocolate e livros. Levei uns quantos para ler em Trieste, onde me queria encontrar com Joyce, Via San Nicolo, como para ter a certeza que fora aí que tinha escrito The Exiles, a sua única peça de teatro. Cheguei a Trieste no dia 16 de Junho, dia de Bloom. Comemorei com os gatos, perto do canal. Post-scriptum: fora apenas um pequeno interlúdio para descansar da cultura. (Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 10/02/06)