Volto ao inicio do roteiro, porque há sempre algo mais a acrescentar, há sempre algo que não foi dito, mas que também não escapou. Escrevo como leio, vou e venho na escrita e na leitura. Revisito e emendo a escrita e a leitura. É um processo sempre aberto, nunca acaba sempre começa.
Falei do “canto das sereias”, por causa de um livro de Maurice Blanchot, O livro por vir (publicado em português pela Relógio D’Água, 1984.) A primeira série de textos intitula-se precisamente:”O canto das sereias”.
Neste ensaio, dividido em duas partes, uma intitulada ‘O encontro com o imaginário’ e a outra: ‘A experiência de Proust’, Maurice Blanchot trata da natureza do encontro com o canto das Sereias.
Para perceber o que era a natureza do encontro com o canto das Sereias, propus-me a ler, novamente, a Odisseia de Homero, na tradução portuguesa, feita por Frederico Lourenço e publicada pela editora Livros Cotovia, em 2003.
Voltando à epopeia, detive-me na profecia de Circe, no canto XII, página 200 do livro acima mencionado li o aviso de Circe a Ulisses:
“Às sereias chegarás em primeiro lugar, que todos
os homens enfeitiçam, que delas se aproximam.
Quem delas se acercar, insciente, e a sua voz ouvir das Sereias,
Ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos
Estarão para se regozijarem com o seu regresso;
Mas as Sereias o enfeitiçam com seu límpido canto,
Sentadas num prado, e à sua volta estão amontoadas
Ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes.”
Fiquei impressionada com a descrição do canto límpido. Não é só a pureza do canto. Não é só a sua singularidade, pois é apenas um, apenas um canto, mas também o conhecimento associado ao canto e o feitiço que exercem as Sereias. Apercebi-me que para várias Sereias havia apenas um canto. Fiquei na dúvida quando me perguntei se eram as Sereias em si que enfeitiçavam os homens ou o seu canto ou ambos. Perguntei-me se era a falta do conhecimento da existência das Sereias e do seu canto ou o conteúdo do canto que eram perigosos ou ambos, pois o saber que elas proclamam é vasto e misterioso para o ser humano: ‘(...) sabemos todas as coisas(...)’ e este ‘todas as coisas’ tem um sigificado bem complexo no mundo grego.
O canto das Sereias, que podemos ler Canto XII, página 204, do mesmo livro, é o seguinte:
“(...) a rápida náu(...) não passou
despercebida às sereias, que entoaram o seu límpido canto:
“Vem até nós, famoso Ulisses, glória maior dos Aqueus!
Pára a nau, para que nos possas ouvir! Pois nunca
Por nós passou nenhum homem na sua escura nau
Que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas;
Depois de se deleitar, prossegue caminho, já mais sabedor.
Pois nós sabemos todas as coisas que na ampla Tróia
Argivos e Troianos sofreram pela vontade dos deuses;
E sabemos todas as coisas que acontecerão na terra fértil.”
Novamente o canto é referido como sendo límpido e é com certeza nesta pureza que reside o aspecto não humano e a própria falha de que fala Maurice Blanchot. As sereias falam de doce canto que emana de suas bocas, falam em deleite inevitável.
Como sempre que leio Blanchot sinto-me tão próxima do alvo, tão perto do conhecimento de algo que me escapa num segundo.