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“-Que se passa, Polifemo, para gritares desse modo na noite imortal, tirando-nos assim o sono? Será que algum homem mortal te leva os rebanhos, ou te mata pelo dolo e pela violência?
Dentro da gruta lhes deu resposta o forte Polifemo: - Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência! » (Homero, Odisseia, Canto IX v.403-408)
Antes da fotografia havia a luz, as sombras e as imagens à superfície calma, ou tumultuosa, das águas dos rios e das fontes. Uma vez desviados os rios e secas as fontes que nos resta desses momentos privilegiados que reflectiam a imagem do mundo e do Homem ? Que nos resta dos instantes passageiros em que predominava a textura dos momentos de luz variável com a inclinação do dia? Durante muito tempo o espelho foi a solução do reflexo que se pode levar consigo, mas já se ouviam os gritos de Polifemo pressagiando a inelutável cegueira da ilusão. É assim que uma personagem de Cem anos de Solidão, José Arcadio Buendia, planeava em fazer o daguerreótipo de Deus...ou de outro deus. Imagino facilmente a paciência de pedra polida de este deus que imprime toda a placa fotográfica, que se extravasa sem medos e que se submete docilmente às rectificações de todas as imperfeições. Cegueira e incansável procura encontram-se na reflexão sugeridas pelas fotografias de Valter Vinagre. É desta forma que o ciclope se apresenta por meio da primeira imagem do livro intitulado: Bored in the U.S.A. é aqui que apenas um olho se multiplica num alinhamento que parece infinito e este órgão produz-se e reproduz-se diante dos nossos olhos na sucessão de ecrãs de televisão. Há apenas um caminho possível e é a única imagem amavelmente fornecida para o lazer do passageiro aborrecido. O nosso olhar está forçado em inclinar-se, fazer uma vénia para a direita com um peso que poderia fazer vacilar todas pessoas ali sentadas se o peso do nosso olhar não fosse tão ligeiro! Depois, mais a frente, num quadro preto, o ecrã rectangular de uma televisão brande a sua imagem murcha e enevoada. Tudo indica que a imagem inocente e límpida não acontece. A imagem já não acontece e estamos longe, muito longe do espelho ou da fresca água fugidia que leva o presente pelo simples facto de passar. É o mundo em diferido, a imagem do mundo pelos meandros misteriosos das ondas abocadas aos tubos catódicos. Porque apenas um olho, o único olho do observador ausente indica a falta de clareza e parece apontar dois espaços. Aquele de um olho no canto inferior direito, testemunha de nosso próprio olhar e aquele do espaço aberto na janela de uma porta também aberta diante do espectador indeciso. Desta vez o nosso olhar penetra no fundo da imagem para perscrutar o que se passa do outro lado. Mas apenas um olho, como o único olho da objectiva, que se encontra no canto esquerdo da imagem, criando um efeito de espelho com a janela semelhante a um quadro e semelhante a outro ecrã de televisão, inquieta e interroga. A pergunta coloca-se como uma evidência inquestionável. Mas quem vê quem e quem vê o quê? Tantos quadros se sobrepõem e todos parecem indicar que só há um olho, um único olho e uma única visão possível dos acontecimentos. No entanto é uma paisagem de acontecimentos que nos propõe o fotógrafo e observamo-la em estereoscopia no fundo das nossas retinas cansadas. Todo o projecto evoca uma grande reflexão sobre a imagem, a sua reprodução e a sua utilização. Cegámos, mas Ninguém nos mata pelo dolo e pela violência.
Aristote, Jocelyn Groisard (traduction), Météorologiques, Paris, 2008, Flammarion.
Depois de Parva Naturalia e o livrinho sobre as parets dos animais...este deve de ser uma pequena delícia sobre o tempo, sobre as núvens!
Guy Gauthier, Le documentaire, un autre cinéma, 3º édition, Paris, Armand Colin, 2008.
Agora Velasquez!
Svetlana Alpers , Les vexations de l'art. Velazquez et les autres, Paris, Gallimard, 2008.
O filme data de 1967 e relata de uma forma geral a chegada de um grupo de turistas a Paris. Como era de esperar o olhar de Jacques Tati é subtil e crítico. Vemos o aeroporto de Orly tal como era no final dos anos 60, mas revelando já o futuro turbilhão de viajantes. Tal como em Jours de Fête, Mon Oncle e Traffic o tema principal é a vida moderna com tudo o que isso implica: espaços pouco acolhedores e até ameaçadores dando lugar à comicidade, como o espaço se reflecte no comportamento das pessoas, espaços limpos, demasiado limpos antecipando a higiene quase doentia dos nossos dias, uma organização social que em vez de aproximar as pessoas afasta-as, um mundo de aparências a dominar todas as relações possíveis, a perda de um mundo simples feito de todo o tempo, a procissão de automóveis, ou os carrosséis de carros, nas rotundas, mas desta vez é tratado através do fenómeno do turismo.
O ser humano é visto no espelho do espaço que habita e este aspecto está ainda mais ancorado na proposta de Tati em Playtime. Pois, cada monumento emblemático de Paris aparece apenas no reflexo das portas de vidro que se abrem e se fecham, mas as personagens nunca parecem mudar de sítio. Este pormenor está presente através de uns cartazes afixados num espaço semelhante a uma agência de viagens. Os cartazes mostram no primeiro plano um prédio de vários andares, o mesmo para todos os sítios Paris, Londres, Havai e no canto inferior esquerdo um aspecto emblemático de cada destino. De facto, fazer um filme sobre Paris e as suas maravilhas não podia interessar o cineasta, mas importava tocar no desconforto criado por todas as estruturas arquitectónicas em construção nas cidades. Construções que dificultam o encontro simples e saudável entre as pessoas.