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Confesso que gosto de ir ver coisas sem procurar muita informação prévia, simplesmente para ver sem estar à partida contaminada por tudo aquilo que rodeia a obra de arte, o espectáculo neste caso. Depois de ver, aí sim procuro informações, procuro confrontar a minha visão com dados concretos, que não sejam já uma avaliação. Gosto deste distanciamento, porque me permite abordar as coisas que me tocam. Perguntas-me sempre o que pensei como se tivesse de pronunciar, ora um veredicto, ora um juízo de valor. É legítimo e produtivo quando o pronunciar não se resume a “altamente”, “muito bom, parabéns”, “gostei”. Não consigo julgar desta maneira. Tenho que deixar decantar as emoções e procurar por dentro o que me tocou. Pelo que me tocou saberás.
A cena extravasa para o espaço do espectador. São reminiscências do teatro íntimo que nos chegam ao penetrar na “estação inexistente”. A intimidade não é só uma questão de que o espaço é pequeno e convidativo, devido às suas dimensões reais, posto que a representação a que assisti decorreu na antiga lavandaria do Hospital Termal, contudo se é o efeito desejado, uma proposta teórica, ou um estilo próprio, sendo uma ou outra coisa, esta proximidade agrada-me. Sempre gostei da continuidade do cenário para fora do espaço do palco fazendo que o teatro é prolongamento ( não quero aqui a palavra representação) da vida ou o contrário. Neste caso, o que une e afasta simultaneamente são as pedras que se encontram junto dos caminhos-de-ferro, traçando linhas, delimitando espaços mantendo-os próximos, contíguos e ao mesmo tempo noutro plano.
Caminhámos sobre as pedras que normalmente ladeiam as linhas dos caminhos-de-ferro e é de outro destino que chegámos. Vimos de uma ponta da linha sem saber que assim era, sem saber para onde vai a outra ponta, para pararmos neste pedaço, neste pormenor de estação, nesta parte da estação que importa, neste “instante de estação”, mas ficámos do outro lado da linha. Este outro lado que não sabemos bem onde se encontra, talvez numa espécie de limbo. É sempre um espaço incerto, aquele do espectador. Incerto ou neutro? Neutro nos casos em que o espectador não participa no logos , no dizer, do espectáculo (se bem que isto necessita outra abordagem que não farei, porque não importa falar disso agora).
Deste lado da linha, estamos todos como à espera do comboio, ou então estamos noutro comboio parado a observar pela janela o que se passa do outro lado deste comboio. Do outro lado, é a vida feita de memórias e de instantes em que a ordem cronológica, isto é, o ritmo do relógio, o pontuar dos segundos não entra, não ordena, mas apenas marca a sua presença por dois marcadores: o tempo, a duração do espectáculo e as indicações cénicas que decorrem do texto, ou as didascálias , anunciando o futuro próximo de um tempo que já é passado posto que estamos directamente a assistir ao seu desenrolar. Deste lado da linha de caminhos-de-ferro, o espaço que observámos é infinito e o cenário recortou como que um “instante da estação”. O instante da estação em que o espectador está presente. Esta questão do instante que me foi transmitida através do recorte de um pedaço de uma estação leva-me a considerar o presente, enquanto algo dificilmente representável, posto que cada instante do presente já é um passado, um passado próximo, ou muito próximo de o ser. Trata-se de um presente complexo, sendo o teatro no momento de representação sempre um “aqui e agora”, mesmo se remete para um tempo passado recontado é sempre presente junto do espectador por não haver intermediários. A representação é directa e única para aquela representação.
Se por um lado o presente da primeira parte do espectáculo é principalmente interno, devido à actualidade do tema e aos prolongamentos eternos que tece com grandes narrativas como The Rime of the Ancient Mariner , ou textos semelhantes do romantismo, onde a expiação passa pela palavra recontada eternamente como uma maldição, por outro lado, o presente da última parte do espectáculo é continuamente lembrado pela indicação que nos é dada pelos lapsos de tempo, intervalos anunciados, que automaticamente antecipam e remetem logo para o passado. Todo o jogo do tempo acaba por ser complexo, mas bem harmonizado, precisamente pela justaposição sentida de dois textos que remetem para dois tempos de concepção, aqui contíguos.
Como falar da passagem do tempo numa paragem...pois uma estação é uma paragem, onde no fundo aqueles que tomam parte activa na vida da paragem, apenas carregam instantes da sua vida na estação que, ao passarem, fazem-se automaticamente passados. As personagens são “habitantes” da estação, são passageiros esquecidos ou habituais, são pessoal da manutenção, são fantasmas que operam sobre a estação contando com a passagem do tempo.
Tudo nesta peça remete para o tempo e com ele a memória. A dificuldade de representar o tempo e a memória é acrescida porque o teatro já obedece a um limite de tempo. É um jogo complexo, porque o espaço do espectador sendo já semelhante a uma estação, onde se espera o espectáculo como se espera um comboio, sem, contudo o tempo de espera operar como motor entediante. Como falar do tempo através de dois textos que se afastam e se reencontram semelhantemente às folhas espalhadas pelo chão, com a memória? Mas a memória é tempo passado e o teatro é tempo presente. É sempre um desafio falar do tempo e da memória e neste caso esta aliança provocou por momentos alguma perplexidade. Perdi-me com os marcadores do tempo, aqueles que não identifiquei, mas esses marcadores serão os mesmos para mim? Para ti? Podemos não ter exactamente os mesmos marcadores ou indicadores do tempo. Como levar o tempo presente e neste caso o tempo do tédio à cena? Algo houve, que sempre me empurrou para o meu lugar na bancada, terá sido a distância dos corpos na presença dos actores?
Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 26/10/07
Era duas vezes, ouvindo a reprodução da gravação, durante muito tempo censurada, de “Pour en finir avec le jugement de Dieu” de Antonin Artaud, de súbito o prazer intenso do silêncio que circunde a voz. Estranhei e soube bem esta voz que se destaca do único silêncio da gravação, um granizo, "grésillement", mobila o silêncio em que se produz o som da voz. Senti saudades deste silêncio. Porque será que hoje em dia procuramos sempre mobilar o silêncio. Falo de mobilar no sentido em que E.Satie escreveu um pequeno texto irónico sobre " La musique d'ameublement".
Eram duas vezes, procurando descansar o corpo da tensão exigida que se tornou quase prolongamento do corpo, deixando a água do chuveiro cair na barriga, os meus olhos fixaram-se num recipiente vazio de sabão líquido. Como poder querer fazer acreditar que a palavra seda, pode ser ingrediente de um sabão? No rótulo li "Agentes hidratantes, energizantes e pura seda"
Será uma questão de tradução?
Como é possível tanta perplexidade diante de uma embalagem vazia de sabão?