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ARESTAS

ARESTAS

Fascínios (3)

Talbot.TheOrielWindow.SouthGallery1835or39.jpg
“A moldura como a conhecemos hoje desenvolveu-se durante a Renascença, a partir da construção tipo fachada de lintéis e pilastras que circundavam os retábulos. Quando o espaço pictórico se emancipou da parede e criou vistas em profundidade, tornou-se necessária uma distinção visual definida entre o espaço físico da sala e o mundo do quadro.(...) A moldura era considerada como uma janela, através da qual o observador espiava o mundo exterior limitado pela abertura de observação, mas ilimitado em si. (...) Esta tendência alcançou um clímax no século XIX, quando (por exemplo, na obra de Degas) a moldura cortava corpos humanos e objectos de modo muito mais ostensivo que antes.”
(Rudolf Arnheim)
Qual é o espaço que delimito e aquele que não vejo quando olho para esta imagem? O que me é dado a ver, além da imagem, é uma informação acerca da imagem, onde aparece o referente: uma janela, além da localização, da data, do autor, do tipo e do tamanho. ([The Oriel Window, South Gallery, Lacock Abbey], 1835 or 1839 William Henry Fox Talbot, Photogenic drawing negative; 8.3 x 10.7 cm). O que faz com que eu possa olhar para esta imagem como uma obra de arte, ou não? Segundo alguns teóricos, como Gisèle Freund, as obras “podem reclamar-se da arte, porque tal como qualquer verdadeira arte, são desinteressadas”, remetendo para os primeiros fotógrafos como Nadar, Carjat, Robinson e Le Gray entre outros. Sabemos da procura científica de Talbot e esta imagem seria apenas mais um estudo possivelmente como o fotograma da semana passada. Posto isto, podemos novamente olhar para ela com o peso de um passado fotográfico, com o peso da in-formação do nosso olhar, conhecimento e sensibilidade, mas tendo sempre em mente o momento histórico. Entre a interpretação imanente e impressionista tem que haver um meio-termo, ou melhor, um compromisso que permite aliar as três intenções de que fala Umberto Eco: a intentio auctoris (intenção do autor), a intentio operis (intenção da obra) e a intentio lectoris, (intenção do leitor) que neste contexto teríamos de chamar “intentio spectatoris”, ou seja, a intenção do espectador, ou aquilo que ele privilegiou no seu encontro com a representação. Vejo a paciência da imagem procurada no contexto do “fazer” de Talbot, na sua procura científica, na sua obsessão de fixação e de reprodução, mas o que é para mim esta imagem longe do tempo em que foi produzida? O que é esta mancha escura com repetidas pautas de sombras rectangulares? O que se encontra dentro do quadro sombrio que parece delimitado por uma grande, larga e única pincelada a preto? O que se revela à volta desta mancha escura? Que se esconde fora do quadro, longe do enquadramento da imagem? Por que razão fico presa ao texto breve, semelhante a uma ilustração da própria imagem, que indica que se trata de uma janela? O que me diz a janela enquanto objecto fotografado? É uma abertura sobre um mundo, logo delimita dois espaços: dentro e fora. Não podemos saber qual o mais denso, depende da nossa perspectiva. Deste lado da janela, estou eu com o meu mundo, do lado de lá está o Outro, que pode, ou não, ser do meu conhecimento, que pode, ou não, aceder aos meus desejos de conhecimento ou de descoberta. Mas já passei do espaço puramente representado ao espaço indicial e do mesmo modo ao espaço da representação. Se se trata de uma janela, seria aquele género que viria a ser tão frequentemente utilizado, remetendo para o quadro dentro do quadro, ou ainda os vários quadros dentro de um quadro, ou até o espelho dentro do quadro, evocando o perplexo jogo de imagens e olhares que nunca tem fim e que parece querer chegar ao dentro que está dentro e que se reflecte visualmente pelo infimamente pequeno, mas que acaba por criar um mundo sem fim, um mundo imenso do qual não podemos nem vislumbrar uma única falha que poderia eventualmente lembrar-nos a nós, trazer-nos de volta a nós. A fotografia como seu único testemunho. Esta janela como único referente. Janela única diante do olhar de Talbot. Um quadro dentro do quadro, um jogo de abismos ainda por dizer, onde sempre nos procuramos. Mas o que há atrás desta fotografia senão a procura sempre repetida? Toca-me esta imagem pelas afinidades que revela com a pintura. Olho e percebo a janela: uma irradiação presa ao mundo da minha representação, apenas vejo o que desejo ver e o que me é possível ver. Eis aqui o meu quadro, o quadro que me represento, o que se encontra atrás dos rectângulos escuros, o que tornou esta janela uma catedral.
(Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 29/09/06)

Ainda Lautréamont

Sobre a poesia e seus autores:
La mélancolie et la tristesse sont déjà le commencement du doute; le doute est le commencement du désespoir; le désespoir est le commencement cruel des différents deg´rés de la méchanceté.(...) La pente est fatale, une fois qu'on s'y engage. Il est certain qu'on arrive à la méchanceté. Méfiez-vous de la pente. Extirpez le mal par la racine. Ne flattez pas le culte d'adjectifs tels que indescriptible, inénarrable, rutilant, incomparable, colossal, qui mentent sans vergogne aux substantifs qu'ils défigurent: ils sont poursuivis par la lubricité.
(Poésies I)

Fragmentos de "Le monolinguisme de l’'autre ou la prothèse d’origine"

(25)
« Mais vois-tu, ce n’est pas très original, et je le répéterai encore plus tard, j’ai toujours soupçonné la loi, comme la langue d’être folle, en tout cas l’unique lieu et la première condition de la folie. "
(37)
« Ce trouble de l’identité, est-ce qu’il favorise ou est-ce qu’il inhibe l’anamnèse ? est-ce qu’il aiguise le désir de mémoire ou désespère le phantasme généalogique ? est-ce qu’il réprime, refoule ou libère ? Tout à la fois sans doute et ce serait là une autre version, l’autre versant de la contradiction qui nous mit en mouvement. Et nous fait courir à perdre haleine ou à perdre la tête."
(53)
"...dans son concept courant, l’anamnèse autobiographique présuppose l’identification. Non pas l’identité, justement. Une identité n’est jamais donnée, reçue ou atteinte, non, seul s’endure le processus interminable, indéfiniment phantasmatique, de l’identification. Quelle que soit l’histoire d’un retour à soi ou chez soi, dans la case du chez-soi (chez, c’est la casa), quoi qu’il en soit d’une odyssée ou d’un Bildungsroman, de quelque façon que s’affabule une constitution du soi, de l’autos, de l’ipse, on se figure toujours que celui ou celle qui écrit doit savoir déjà dire je."
(54)
« … le je de l’anamnèse dite autobiographique, le je-me du je me rappelle se produit et se profère différemment selon les langues. Il ne les précède jamais, il n’est donc pas indépendant de la langue en général. "
(Jacques Derrida,Le monolinguisme de l'autre ou la prothèse d'origine, Paris, Galilée, 1996.)

Nomeio o mundo

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.
Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito aind alá sente,
Em cada pausa e pulsão, um verso.
(Vitorino Nemésio)

Fascínios (2)

FoxTalbot.Wrack.1839.jpg
Sabemos que o punctum está fora-de-campo e fora-de-código. Lugar de singularidade e do referencial único, o punctum irradia e, o que é mais surpreendente, presta-se à metonímia.
E uma vez que se deixe envolver nas ligações de substituição, pode invadir tudo, objectos e afectos. Este singular, que não está em parte nenhuma do campo, mobiliza tudo em toda a parte, pluraliza-se (...) O punctum (...) induz à metonímia e é a sua força, ou melhor do que força, a sua “dynamis”, isto é a sua capacidade e a sua virtualidade.
(Jacques Derrida “As mortes de Roland Barthes” in Poétique nº47, Paris, Seuil, Setembro 1981, p.286)
“O que é exactamente a aura? Uma trama singular de espaço e de tempo: a aparição única de um longínquo, por mais próximo que esteja”
(W. Benjamin) Quais são os signos, ou os códigos que identificamos, ou que lemos, ou que procuramos dentro de nós quando vemos esta imagem? O que interessa nesta imagem, que cada um vai interpretar apenas com os seus dados e que remeterem para um sistema de códigos, ou sinais que acabam por se tornarem comuns? A imagem que nos é dada a ver, remete obviamente para um tempo e um espaço. O referente, isto é, o objecto fotografado, indica um tempo, nem que seja aquele tempo em que se encontrou sobre o papel sensibilizado, e um espaço que lhe são próprios, que desconhecemos e de que temos pouco conhecimento. Contudo, também remete para um tempo e um espaço que apenas nos pertencem, isto é, o momento em que vemos a imagem.
O que nos toca tão profundamente ao ponto de não poder, nem saber dizer porquê? Porquê tanto fascínio por uma imagem assim, deslocada, antiga, deslavada, semelhante à folha de um Outono longínquo encontrada por inadvertência entre as páginas de um livro lido uma única vez? Qual é o poder? Qual a tensão criada por esta imagem, aparente e inocentemente, sem importância? Há algo do real que se encontra nesta fotografia e, no entanto, o real está invertido. Será apenas pelo efeito de negativo produzido pela impressão da planta no papel? Trata-se do vestígio de algo real, mas um vestígio deturpado pela inversão. É um fotograma, uma imagem que nos foi deixada por William Henri Fox Talbot, em 1839, resultado do seu interesse ecléctico, onde podemos ver se juntar três campos, três áreas do conhecimento, que se cruzaram e se encontraram: a botânica, a química e as artes.
Esta é semelhante aquelas imagens que permanecem sempre únicas, e neste caso concreto, verdadeira e totalmente, irreproduzível. Trata-se de uma imagem apenas possível graças ao prodígio da luz. A luz, aquela que cria e destrói, aquela que, segundo Plínio, permitiu o primeiro desenho, baixo-relevo (escultura), pintura... Aquela que se retira, ou melhor, se transforma simplesmente, com um pequeno aviso prévio, que se inicia no tempo e que se desenvolve paulatina, mas irremediavelmente. A imagem muda pouco a pouco. A luz, que frequentemente associamos ao branco, enquanto não for fixada, torna tudo escuro, apesar de também ser luz. Não se trata aqui da velocidade que apaga, deixando a ausência de corpos na imanência da presença, ou da transparência, da luz, mas do fenómeno de enegrecimento. Um processo que produz uma imagem totalmente escura. Qual o efeito de tal imagem se a pudéssemos ver? A imagem acaba, aqui, pois dizem que com a luz está a sua morte. Portanto o pobre e desapontado espectador, ainda procurando dentro de si algum significado, poderia inventar a imagem que ficou escura. Poderia muito bem inventar a sua própria imagem, ou a planta que uma vez pouso no papel. Aqui encontramos a sua efemeridade transformada, dada a ver como vestígio de um real que não existiu, mas de que temos conhecimento.
O que acaba sempre por prevalecer não é tanto o que pretendia o fotógrafo William Henry Fox Talbot, mas a permanência da imagem. Não se trata do registo, posto que todos nós podemos efectuar este registo, podemos conhece-lo, sabemos do registo da planta, excepto se pensarmos no registo do próprio acto fotográfico. Reencontramos o princípio de conexão física, aquele que nos indica o passado do referente, neste caso a planta que não foi, mas de que temos conhecimento, ou daquilo que era. Sendo a impressão física de algo que era, surge então a procura do significado ao representar a planta tal como era na nossa memória A imagem também remete para o princípio de singularidade, ou seja, esta representação é única, entre elas se encontram alguns trabalhos de Talbot (Desenhos Fotogénicos) sobre as imagens obtidas por sedimento directo de objectos colocados sobre um papel sensibilizado ao nitrato de prata. Será que se poderá determinar um princípio de designação? Além do testemunho, o que chama a nossa atenção? O que cria o alheamento? O que nos é mostrado é o vestígio da sombra da planta. É a “dynamis” do punctum.
(Ana da Palma, Gazeta das Caldas,22/09/06)

Aranhas e outras teias (7)

“She pulled the blind now. The clock began striking. The young man had killed himself; but she did not pity him; with the clock striking the hour, one, two, three, she did not pity him, with all this going on. There! The old lady had put out her light! The whole house was dark now with this going on, she repeated, and the words came to her, Fear no more the heat of the sun.”(Mrs. Dalloway, V.Woolf) Há manhãs, assim, letárgicas, que nunca acabam de chegar. O sol não jorrou directamente a sua lentidão alaranjada. O dia começou lentamente, arrastando a penumbra dos vestígios da noite, anunciando-se devagar. Primeiro, o horizonte desdobrou-se em fendas ligeiras e linhas opacas delineando as sombras dos raios do sol ainda por vir. Depois, a luz emergiu, como por magia, difusa, atrás dos fios de névoa cinzenta semelhante a um cobertor de lã deslavada e roída pela traça. Muito mais tarde, é que o manto pálido se desfez totalmente, no exacto momento em que o disco luminoso e amarelo saltou mais alto que a linha fictícia do horizonte, apagando todas as penumbras. Coisa impossível de ver na cidade, onde o horizonte do lado do nascente é constituído apenas por prédios atrás de prédios paralelos às ruas que se cruzam, se encontram, se perseguem ou se afastam, como pautas confusas e irregulares, onde apenas os homens parecem encontrar caminhos. Mesmo assim a flora metálica, estranha e imaginária, de antenas de televisão reflectiu a progressão lenta da alba.
Quando acordou, o dia ainda estava enevoado. As nuvens matinais migravam frequentemente para este lado da encosta revelando um espaço semelhante a um cenário de teatro, onde, de um momento para o outro, tudo desaba em luz e nitidez. Cada tempo tem as suas características, cada estação as suas revelações cíclicas e cada dia as suas repetições maravilhosas. Os acontecimentos da noite anterior pareciam não ter passado de um sonho. Quando se sentou à beira da cama, com os pés pendurados a 10 centímetros do chão, fixando uma fenda no soalho, pensou que nunca houvera alguém a bater a porta. Ao bater no chão, os pés fizeram estremecer a mesa à beira da cama. Dirigiu-se para a cozinha para preparar o pequeno-almoço. Ao abrir a janela ouviu o chilrear peculiar semelhante a um riso sarcástico, fora o primeiro melro da manhã. A chávena branca destacava-se sobre a toalha azul. Instalou-se à mesa com chá e torradas, mas de súbito, lembrou-se da carta que não lera. Levantou-se em sobressalto, mas reconsiderando este impulso, acalmou, amainou e domou a sua impaciência para se dirigir com uma lentidão exagerada para o quarto, medindo passo a passo a realidade. Regressou à cozinha com o envelope na mão. Abriu-o e leu:
Larache, 17 de Agosto
Minha amiga querida de sempre,
Sei que há muitos anos que não te escrevo, nem sei se ainda estás na mesma casa, mas o mais natural é que aí estejas.
Depois destes anos todos, depois de todo este tempo, no fundo, o tempo de uma vida, não sei por onde começar. Quando tudo é intenso e rico em acontecimentos é difícil contar. E não são só aquelas coisas que acontecem por fora, o que faria avançar a acção num livro, numa história, ou num filme, mas principalmente o que os acontecimentos, mesmo insignificantes, provocaram por dentro, que torna as coisas mais complicadas. Como se a vida, vivendo-a, se imiscuísse naturalmente no corpo deixando as suas marcas, sem que estas se tornassem palavras. Todos os laços irremediáveis com todas as memórias. Precisava de mais uma vida para te dizer pouco a pouco, sem seguir aquela ordem cronológica do tempo, para que saibas exactamente os pormenores desta minha vida, simplesmente porque a ordem cronológica acaba frequentemente por não deixar espaço para o resto. Presumo que teremos tempo para nos dar a conhecer novamente, pois minha cara amiga, volto para casa, devo chegar um destes dias à noite. Não te assustes se alguém te bater à porta. Queria dizer-te que o meu regresso consiste um pouco em libertar-te da tarefa que te deixei sem querer, a casa, as cartas, o gravador. Percebi que não tinha o direito de te pedir tamanho sacrifício. São apenas objectos da minha memória e terei de lidar com eles. Venho para te ajudar a vender essa casa, onde o tempo não passa e comprar algo mais alegre, uma casa perto de uma lagoa e do mar, com colinas para respirar e crianças para cantar.
Um grande abraço e até breve!
Sérgio.
(Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 15/09/06)

Aranhas e outras teias (6)

“The wind must have risen. She was going to bed, in the room opposite. It was fascinating to watch her, moving about, that old lady, crossing the room, coming to the window. Could she see her? It was fascinating, with people laughing and shouting in the drawing-room, to watch that old woman, quite quietly, going to bed alone.” (Mrs. Dalloway, V.Woolf)
Com a luz inclinada do fim do dia chegou uma ligeira brisa marítima. Um vento fresco que trouxe com ele uma ténue névoa como para afagar o calor premente do dia. Ao longe, nuvens brancas e redondas pareciam delinear um colar de missangas de algodão elegantemente colocadas no pescoço do horizonte. Nestas terras do fim da Europa, Finisterra abocada com o atlântico, é este o vento que invade o fim das tardes, convidando a se recolher, a se abrigar da humidade, enquanto que o vento que sopra no mar calmo e envolvente do mediterrâneo é quente e embriagante, evocando a ternura das carícias possíveis, as paixões arrebatadoras e a fatalidade do destino ao final de um dia assombrado por um calor pegajoso. É um vento sensual que relembra os amores impossíveis dos primórdios de Roma e as lutas devastadoras pela conquista dos portos de toda a orla costeira do mediterrâneo.
Chegara a hora de regressar a casa. Arrumou a carta na bolsa e enfiou a mão direita no bolso da saia procurando, timidamente, encontrar o envelope fechado que encontrara na caixa do correio durante a manhã. Não tivera coragem de o abrir e permanecera o dia todo no bolso como a promessa de algo ainda por vir, ou um enigma para resolver, sem saber se a carta podia ser uma chave para perceber algo que não tinha sequer explicação. Não havia equívoco na caligrafia das letras traçadas a azul no endereço, a data comprovava que fora enviada há uma semana do norte de África. Não podia estar enganada, só podia ser uma carta do Sérgio. Uma carta recente após todos estes anos de silêncio e de ausência. Os dedos impacientes acariciaram levemente o envelope e voltaram a sossegar. Dirigiu-se para casa. Era hora de jantar. Era hora de recolher o peso do dia entre os lençóis.
Quando chegou à porta do prédio, cruzou-se com uma vizinha. Falaram um pouco do dia, da vida, dos filhos, do preço do arroz... Todas palavras gastas, mas necessárias para manter os laços de uma vizinhança saudável. Todas palavras de que já nem sabia o sentido, mas que repetia como uma lengalenga, algo que apenas comprovava que o tempo ainda seguia um ritmo cronológico e que passava sobre os actos quotidianos de cada um como a agulha de um relógio nos quadrantes, sabiamente orquestrados por um tiquetaquear regular. Todas palavras simples, mas geniais, porque aconchegavam e reconfortavam dando à vida aquela repetição necessária na urgência do tempo que passava.
Entrou em casa e dirigiu-se para a cozinha. Pós um pouco de sopa a aquecer, enquanto colocava a pequena toalha azul na mesa. Depois de jantar, foi à janela repetindo sempre aquele olhar semelhante às palavras que trocara com a vizinha. Olhou para o fundo da rua e a seguir para o céu antes de fechar as portadas. A porta do quarto estava aberta e a luz da rua iluminava a almofada branca. Tirou a roupa, colocou a saia em cima da arca, tirou a carta do bolso e deitou-se. Fechou os olhos com a carta na mão. Propunha-se a abrir o envelope, mas deu voltas na cama sem conseguir, nem tomar a decisão de ler a carta, nem de adormecer. À medida que as suas pálpebras se tornavam mais pesadas, não parava de pensar no Sérgio, na carta que tinha na mão e que ainda não lera. Os seus pensamentos davam volta inesperadas entre a janela da casa de fronte, as transcrições da gravação, o jardim, as árvores, a cor do dia e o que ia fazer amanhã, quando, de súbito, ouviu bater à porta. Quem será a esta hora de noite? Quem podia bater à sua porta. Há muitos anos que não tinha visitas. Os seus amigos estavam longe, todos dispersos por países estrangeiros, todos longe uns dos outros. Quem podia chegar assim tão tarde. Sentou-se à beira da cama. Levantou-se devagar e dirigiu-se para a porta a titubear entre o sono e o sonho, sem saber se ouvira mesmo bater à porta, sem pensar ia lentamente abrir a porta. Quando abriu, um ser quase familiar surgiu na sombra do vão da porta. Sussurrou umas palavras inaudíveis. Balbuciou um nome...Sérgio?...És tu? Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 8/09/06

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