"Fear no more the heat of the sun.(Mrs. Dalloway, V.Woolf) Andou pelas ruas, escolhendo as zonas de sombra nos passeios desertos à procura de um sítio para se sentar e ler mais uma carta. Dirigiu-se para um jardim, hesitante, verificando de vez em quando se o maço de cartas se encontrava na bolsa. Sentou-se num banco, perto de duas árvores. De súbito, ao virar os olhos para cima, para identificá-las, ou ter a certeza de que as árvores ainda lá estavam, constatou que tinham um ar cansado e que as folhas deslavadas eram quase cinzentas. Contudo, ainda se assemelhavam a uma tília e a um ginko. Lembrou-se do cheiro melífero ligeiro e persistente das tílias em Julho. De súbito a luta para salvar o carvalho de Guernica chegou à sua memória. Há anos que já não se falava dessa árvore, símbolo dos vestígios de uma organização social caduca diziam, caduca...como as folhas da árvore...o que terá acontecido depois de terem salvo o carvalho de Guernica? Olhou à sua volta, não havia ninguém, nem pessoas, nem pombos...apenas a frágil criação de minhocas silenciosas, o ronronar do motor da estação de controlo, purificação e repartição das águas de rega das duas árvores e de uns estranhos arbustos que pareciam ser o resultado do cruzamento entre uma espécie de cedro e de giesta. Procurou uma carta na bolsa, tirou-a e pôs-se a ler quase em voz alta: 28 de Julho 1964 Querida amiga, Depois de um dia muito trabalhoso e cansativo, cheguei a casa exausto, mas com a firme intenção de dedicar o resto do dia aos vestígios deixados pela antiga proprietária. Depois de tomar um duche refrescante, trouxe papel e caneta para o jardim e estou aqui a escrever esta carta. As flores de tília desprendem-se com a brisa ligeira deste fim de tarde. Sabes, soube-me tão bem descobrir que se chamava Judite. Agora tenho um nome para lhe pôr e isso dá-me um certo poder sobre ela, sobre esta voz que me encanta, ou atormenta. Falo de poder ao dizer o seu nome e, de súbito, não sei bem se não se trata do poder que o nome exerce sobre mim, ou o contrário. Sinto-me cansado como se nada fizesse sentido, nem me apetece sair com os meus amigos. Afastam-se como se não tivéssemos mais nada em comum, talvez seja apenas eu, talvez seja apenas uma fase, um momento. Penso que também existem momentos assim, mas o que me é alheio é que isto, este afastamento, é o resultado de algo construído, algo que tenho vindo a arrastar no tempo, como algo previsível e irremediável. Pois sabes, apesar de constatar os efeitos deste afastamento, ou alheamento e de sentir as suas repercussões na minha vida social, é me totalmente indiferente. Assusta-me esta indiferença! Aqui te mando a segunda transcrição. Há algumas partes que não consegui perceber. Não sei se é um silêncio propositado, ou se banda magnética está danificada. Guarda estas cartas cara amiga, pois não fico com nenhum registo das transcrições. Um grande abraço. Teu amigo Sérgio. Segunda transcrição:
Não sei o que me intriga mais quando a vejo se deslocar diante da janela...é uma vontade estranha de entrar na sua vida, conhecer os seus gostos, perceber as suas relações íntimas com os outros habitantes da casa...mas os outros passam diante da janela e não os reconheço, como se só pudessem existir através dela, não os identifico, só ela interessa e isso preocupa-me...olho para mim no espelho e vejo-a...não sei............................................................................................ como se o corpo desta mulher ocupasse o espaço todo, vou construindo a sua vida através do corpo que vejo passar, dos gestos, das roupas, do ritmo do dia a dia. Sabe-me bem sentir isso...isso, o ritmo do seu dia a dia, como uma estrutura em torno da qual tudo gira...Por vezes, fico surpreendida com o corpo como se estivesse a ver o meu... reconheço sinais, marcas semelhantes às que também tenho, mas aquela mulher teve filhos que nunca tive...mesmo assim na distância é igual...parece-me que sou capaz de lhe sentir a textura da pele... pois mesmo assim de longe vejo as suas veias, a pele fina e translúcida, as marcas do tempo, as rugas, as cicatrizes, os traços das suas gravidezes, dos abraços, das dentadas, das mãos que a agarraram ...não...impossível .................................................................como é possível que possa pensar no seu corpo, nas marcas do seu corpo assim? ... desejo? de que é feito o desejo...como falar do desejo agora neste tempo... quando no nosso mundo não se comenta, nem se sabe nada? Nas cartas de Epicuro tudo parece bem delimitado... há o desejo natural e o desejo vão... como gostaria que fosse mesmo assim... Existe um desejo vão? qualquer desejo tem algum fim? (Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 28/07/06)