Sentei-me no banco do jardim e continuei a ler o texto encontrado num autocarro que me levara de Panamá a Colón algum tempo antes de chegar a Lisboa. Não sei o que hei de fazer com este manuscrito, não sei a quem pertence, mas a leitura tem me dado algum prazer. Peguei num lápis e comecei a numerar as páginas soltas. Um rapaz passou com um cão. Puseram-se a brincar com um pau. Chegou uma mulher com o filho. O miúdo reclamou o baloiço, depois o escorrega, a seguir a abelhita e novamente o baloiço, o escorrega e o baloiço, como se esta ordem fosse absolutamente necessária ao frágil equilíbrio entre o desejo de preencher o tempo, a necessidade de brincar e o medo de serem já horas de partir. Chegaram outras crianças e invadiram o jardim. O cão aproximou-se e assustei-me de tal maneira que deixei cair o manuscrito. As folhas ficaram dispersas pelo chão. Uma voz autoritária, quase rouca, emergiu da boca do rapaz Bolas! Pára. Senta. Levantei-me para apanhar as folhas. Recolhi-as num molho, sentei-me novamente para limpá-las da terra e juntei-as lenta e desordenadamente. Durante o curto instante, entre o meu grito de surpresa e as palavras do rapaz, todos tinham olhado para o cão, para mim e para o rapaz, mas agora os miúdos continuavam a aplicar-se no escorrega, no baloiço e na abelhita suspensa no ar por uma mola meia verde e meia ferrugenta. Depois de recolher as folhas esparsas, levantei-me para ir para casa. Passei pelo supermercado para comprar água e café. Ao virar a esquina dei de caras com o dono do cão. Ele passou, eu passei, sem uma palavra, sem uma expressão no rosto. Não há nada a dizer. Vivemos mundos separados. Vivemos todos mundos separados, não temos tempo. Nem que seja um simples movimento, um olhar, ou um sorriso cansa-nos. Apenas um gesto é de mais. Ouvimos a nossa própria voz a falar da nossa própria vida que preenche o espaço todo e esquecemo-nos dos outros. Abri a porta do prédio. Subi as escadas. Pus a chave na fechadura, quando de súbito tive uma estranha sensação, como se houvesse uma presença inquieta atrás de mim. Virei-me surpresa e um pouco assustada. O rapaz parara no patamar com uma folha na mão. -Espere, ficou esta no jardim. Sorri, estendi a mão, agradeci, fiquei confusa, sem saber se devia de convidar o rapaz a entrar, pois durante um momento, que pareceu uma eternidade, a folha permaneceu na sua mão sem que ele a largasse. - Obriga...obrigada...Desculpe...eu...ainda bem... - Não é nada, pensei que lhe faria falta. Despedimo-nos e entrei finalmente em casa. Feliz por ter recuperado algo que nem sabia que tinha perdido. Fiz um chá e sentei-me à secretária para continuar a leitura:
Por fim tenho um pedaço de terra. Por fim, tenho um corpo onde deitar as minhas sementes. Um corpo que me alimenta e me entranha. Também descobri uma parte de mim, num texto do escritor belga, Eugène Savitzkaya. Como ele, sinto com estranheza as minhas mãos, depois de remexer a terra, mas também não me convenço em usar luvas! Construí jardins de ervas e de cheiros fictícios. Combinei em sonho o hissopo com as couves, o rabão rústico com as batatas, a borragem com os morangueiros, a hortelã sempre perto das roseiras, a nêveda dos gatos ou erva gateira, assim como a valeriana, à volta da horta. Programei jardins eruditos, onde a convivência de cada planta fora estudada para servir de alimento ou de protecção à outra. Assim, foram imensos os canteiros em forma de patamares, escadarias de cheiros, cascatas de ervas medicinais, assombrosa combinação de infusões futuras, tudo orquestrado num conjunto caótico, quase natural. Construí autênticos palácios de paraísos odoríferos, moldados e inspirados no jardim de Alkinoos, no paraíso terrestre tão perdido, nos jardins imaginários e outros mais reais. Já me via alimentando as minhas noites de chás, loções e poções maravilhosas. Há sempre tanto a fazer com as mãos! Depois de semanas a remexer, a medir o calor do estrume, o grau de acidez, a consistência da terra, etc., a caneta, o lápis e o teclado resistem, como se já não houvesse espaço possível para outro instrumento a não ser a mão e os dedos. Depois de um tempo, é impossível escrever com as reminiscências da terra pegadas às mãos. Os dedos tornam-se mais lentos, mais espessos e desajeitados e a pele insensível.
(Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 21/04/06)