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ARESTAS

ARESTAS

Reminiscências longínquas de uma tarde sem árvores

“Filho, está tudo a arder junto à casa!”.

Os vizinhos alertaram-nos para a calamidade deste ano de seca sem fim. Disseram-nos que as estações já não diziam a verdade e que os frutos amadureceram antes do tempo. Sabemos desde sempre que no Verão o fogo lavra os solos. Sabíamos desde do Inverno passado que a chuva não abundou na terra. Daqui sinto o sabor das lágrimas de uma dor premente, algo como um sopro insustentável, uma opressão aqui...saber...Dir-me-ás, que fazer agora que tudo parece perdido? Que fazer agora que é tarde para limpar matas, agora que é tarde para instalar bocas-de-incêndio perto das casas, perto das matas? Que fazer agora que é tarde para educar o habitante da terra, para mobilizar os militares e motivar a sociedade civil para vigiar durante o período estival as matas e as florestas? Como fazer para dispor de meios eficazes e coordenados para combater o fogo que arde sem fim nestas terras secas? Que fazer agora que tudo parece perdido? Falam-nos por correspondências, dizem-nos que são muitos campos de futebol, como forma de avisar... Será que só assim podemos visualizar o tamanho dos estragos? Qual é a linguagem dos Homens? Foi em terras de sonho que vi equipas a limparem as bermas das estradas mesmo antes do Verão, porque fazê-lo em plena primavera ainda pode voltar a crescer. Foi em terras de sonho que havia ainda conhecimento do tempo das coisas da terra, dos seus crescimentos e desenvolvimentos. Foi em terras de sonho porque agora...

“Filho, está tudo a arder junto à casa!”

Disseram que vinha alguma ajuda a caminho, nunca é tarde para receber ajuda, mas não chega a ajuda pontual no momento de maior tristeza. Daqui sinto os soluços daquele vizinho de boina assombrada de sol, algo como um peso no peito que não me larga, não pára, não sai...Dir-me-ás, que fazer quando somos apenas homens, insignificantes e minúsculos, com apenas duas pernas para correr e dois braços incapazes de abraçar o mundo, o nosso mundo, incapazes de zelar pelo ar, o nosso ar, incapazes de saber os mistérios das águas, as águas que bebemos, incapazes de pensar que depois de nós há um número incerto de nós? São tantos nós! Entretanto...

“Filho, está tudo a arder junto à casa!”

Não posso esquecer os esquilos de cauda escura da serra do Alvão, não posso olvidar a cor de choro dos olhos da mulher, nem o olhar de espanto da criança que não dormiu. Daqui sinto uma falta de força nos braços para agarrar uma enxada, um balde, uma lata, um caneco, para empunhar uns ramos de giestas e bater, bater, bater até atingir o pó da terra no cerne e bater-me-ia contra as chamas com toda a força daquele que nada tem e tudo perde. Porque...

“Filho, está tudo a arder junto à casa!”

Daqui vejo os ombros do Senhor Alberto cobertos de cinzas. Vejo os seus braços erguidos para o ar, lançando um desafio à gravidade das fagulhas, nunca atingidas pela água que se perde em mil gotas. Daqui ouço as telhas a estalarem e os barrotes a curvarem-se. Daqui vejo os vidros a estoirarem, as chamas a lamberem os tectos, os soalhos, cheira a fumo. Fumo, tanto fumo escurece o meu céu; tanto cheiro a vidas ardidas, que nem uma chuva benfeitora pode limpar porque...

“Filho, está tudo a arder junto à casa!”.

Mesmo sendo floresta plantada, mesmo sendo eucalipto, prefiro o ar limpo com ozono pintado de verde no mapa de avaliação da qualidade do ar. Um mapa, mesmo sendo distante, é útil. Um mapa que não fala comigo, mas autentifica a preocupação de alguns e cumpre a sua função de alertar o Homem com gráficos, números, percentagens. Os gráficos são sempre autênticos, quase mais que um fogo junto da casa! Mesmo assim prefiro um mapa verde! Dir-me-ás, que fazer agora senão apoiar os corajosos homens fardados, nos camiões da cor do desejo dos meninos? Que fazer senão constatar o estado das coisas, todas as coisas?! Que fazer senão lamentar o habitante da terra desabitado ou morto pelo fogo? Criar fundos de apoio, indemnizações? Agora não há culpas que possam servir, mas também não há agora desculpas que possam servir, porque novamente...

“Filho, está tudo a arder junto à casa!”

Ana da Palma, GdC 26/08/05

Uma tarde com árvores... O plátano e a Floresta Eólica

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São muitos os plátanos no parque, na mata, nas ruas e à beira das estradas. Parece ser uma daquelas árvores mais plantadas, talvez por ser resistente, por nos transmitir aquele sentimento de que se preocupam com as coisas da terra, dado a sua inclinação. Desesperadamente à procura de luz, abrem um espaço que desde logo lhes pertence. Árvores de alamedas perfeitas, seguras e robustas acompanham os caminhos dos homens. Uma árvore que o homem pode moldar com formas específicas, deixando-as crescer ou cortando-as por cima tornando o seu tronco robusto, enorme, pesado. O nome está quase inapropriado à árvore. Mas o que será que diz o meu livro? Da família dos Platanaceae, apenas três aparecem: O Platanus L., o Platanus orientalis L. E o Platanus x hispanica, mas parece que há também o Platanus ocidentalis. Há pouco a dizer do plátano, pois é, principalmente, uma árvore ornamental. Não há notícias sobre a sua utilização na fitoterapia. Tem uma casca característica que se assemelha a crostas de feridas e deve de ser por essa razão que retirar a casca dos troncos propicia um certo prazer às crianças. As suas folhas são características, pois têm três pontas e no Outono ficam com umas belas cores que vão do amarelo, da cor de laranja ao castanho. Mas é no Inverno que esta árvore dá trabalho, quando sopra o vento entre os troncos nus e os jardineiros tentam, desesperadamente, amontoar as folhas, que sempre se dispersam ou são dispersas pelas crianças que gostam de ouvir o som dos pés a amachucar as folhas como se fossem tantas folhas de papel. São estes os prazeres desta árvore: a casca e as suas folhas caídas no Inverno. Os plátanos plantados em linha na mata impressionam, pois alinhadas as árvores parecem perder um pouco do seu poder. À beira dos caminhos ou das estradas, como a chamada “Estrada da Foz”, são belos os seus túneis estivais, os seus troncos inclinados que evocam uma certa tristeza, novamente, a árvore liga a terra e o céu pela sua doce curva, preocupadas com os homens, parecem querer murmurar um segredo. Os segredos das árvores permanecem nas suas ramagens, que acolhem os estivantes entontecidos de sol, residem no arco, que envolve o olhar do homem, e escondem-se nas suas copas irregulares ou arredondadas conforme o tipo de plátano. Há tempos pensei na beleza natural, isto é a beleza que é bela por si apenas, intocada pela mão do homem, ou quase, porque uma árvore ganha formas com as podas, mesmo assim permanece com uma centelha de imprevisibilidade, é isso a sua beleza natural. Quando vi as ventoinhas para a produção de energia eólica, pensei numa floresta, também, e saber a sua função fez com que estes pilares brancos encabeçados por umas asas quase desproporcionadas me parecessem belos. A beleza que atingiram estava não tanto no objecto em si, mas na ideia que um tal objecto poderia vir a fazer uma diferença significativa na vida dos homens que virão, pois para nós o tempo já passou, já nos ultrapassou, mas saber que, pelo menos, os que estão ainda por vir terão nestas florestas metálicas um vestígio da nossa busca e da nossa preocupação. Normalmente, o belo natural desempenha uma função quase invisível ou pelo menos esquecida dos homens, enquanto que o belo artístico não teria, a priori, que ter alguma função a não ser servir um prazer estético puro, isto é um prazer apenas, e por ser um prazer absoluto acaba por ser extremamente complexo. Podemos contudo prestar beleza a coisas ou objectos que à partida não foram concebidos para terem uma função estética como à floresta eólica! (Ana da Palma, Gazeta das Caldas, 19/08/05)

Uma exposição, uma tarde...O lápis de Bordalo –Bordalo nas Caldas –

“Sahido um domingo a passear com o avô, a cuja rispidez ninguém se atrevia a replicar, o pequeno Raphaël, encontrando no caminho outro petiz que lhe não despertou sympathia, entendeu que lhe não devia fallar, motivo pelo qual o severo jurisperito o censurou asperamente, fazendo-lhe ver que um menino bem educado devia cumprimentar todos os conhecidos. Raphaël tomou nota, e no domingo immediato, repetindo-se o passeio, desata a certa altura em grandes barretadas, sem que naquella occasião fosse passando alguém.
- Quem está o menino a cumprimentar d’esse modo? – perguntou intrigado o avô, franzindo o sobrolho.
- O avô não me disse outro dia para cumprimentar todos os conhecidos? Inquiriu por sua vez o pirralho.
- Disse, sim senhor.
- Pois está alli um meu conhecido... – respondeu Raphaël Bordallo.
E continuando a acenar com o chapéu, apontava um cão vadio que costumava errar por aquellas paragens.”
(Manuel de Sousa Pinto, 1915)
É a este homem, Rafael Bordalo Pinheiro, que sempre preservou a capacidade de surpreender e de ser surpreendido, que o Museu do Hospital e das Caldas dedicou a exposição intitulada Bordalo nas Caldas – Obra Gráfica. Se para constituir um território são necessários poucos estímulos; se a constituição de um território é quase o nascimento da arte, então o território construído por Rafael Bordalo Pinheiro está abocado com a arte. Por um lado, pelo legado que constitui a sua obra gráfica para a caricatura portuguesa, como para a banda desenhada e, por outro lado, pela actualidade imarcescível do seu traço e do seu olhar. Em todas as artes, a perenidade, não tanto no sentido do registo e do suporte, mas na forma como se imiscua nos nossos tempos, na perfeição da composição e na actualidade dos conteúdos, é o que faz de uma obra uma obra de arte. No caso de Rafael Bordalo Pinheiro os estímulos são: o campo, a linha e a luz. Por um lado, as ideias transmitidas atingem o seu efeito máximo quanto mais breve, mais resumido o traço ou o signo. Por outro lado, o artista desenvolveu uma linguagem gráfica metafórica com grande sabedoria, utilizou signos e símbolos de forma subtil e refinada, criou neologismos e soube empregar de forma sistemática todos os recursos ou efeitos do cómico. “Vamos tentar ter alguma piada” dizia ele. Alguma piada é pouco, para um homem que revela ter um profundo conhecimento da natureza humana, uma sensibilidade exacerbada dos processos de transferência e equivalência. É de uma extrema modéstia, quando sabemos o impacto que tiveram as suas publicações. Quanto à capacidade de observação e à memória visual de Rafael Bordalo Pinheiro resta-nos o testemunho de Manuel de Sousa Pinto: “É que, muito antes da invenção dos Kodaks, Raphael Bordallo dispunha de uma retina que, no tocante à fidelidade e rapidez, nada tinha que invejar às mais aperfeiçoadas e instantâneas objectivas photográphicas, como, alliaz, de um modo inaudito e oneroso o reconheceu a Fazenda Pública.” Como trabalhar esta memória em anos de distúrbios sociais, de crises políticas ou financeiras ou de repressão? Como trabalhar o signo para apontar a verdade, dizendo-a, revelando-a? Podemos ver a resposta a algumas destas perguntas na exposição Bordalo nas caldas – Obra gráfica. Podemos perceber o grau de inteligência atribuído ao Infante D. Augusto, por meio da simples representação de um corpo enorme e desproporcionado em relação à cabeça. Podemos apreciar a louca aliança de imaginação gráfica, servindo o profundo desagrado que causa o administrador do hospital das Caldas o Pim, nome dado ao Conselheiro Pimentel. Como utilizar a metáfora de forma tão clara e evidente que não deixa qualquer dúvida possível para outras interpretações? Assim cada administrador do hospital termal é representado sob a forma de uma sereia. Aparece a Sereia Pim (Pimentel), a quem sucedeu a Sereia Mazilapatão (Rodrigo Berquó). A exposição, além de mostrar as obras de Rafael Bordalo Pinheiro e de ter um carácter didáctico, posto que relata um período da história das Caldas da Rainha e em particular do hospital termal, revela uma sensibilidade muito especial no percurso expositivo. Começa e acaba sob a forma de uma dupla homenagem. A exposição começa por uma belíssima peça original onde podemos ler: “Muito agradecido à gentileza com que foi recebido nas Caldas”. São momentos íntimos entre a História das Caldas e a Arte ofertados pelo “lápis de Bordalo”. (Gazeta das Caldas, 12/08/05, Ana da Palma)

Últimas leituras

Bernard Stiegler, Aimer, s'aimer, nous aimer. Du 11 Septembre au 21 Avril, Paris: Galilée, 2003.
"Je ne suis je que dans la mesure où j'appartiens à un nous"(16)
 
"Or, un consommateur n'a pas le droit de dire je: un consommateur n'est plus ni un je  ni un nous, car il est réduit au on: il est dépersonnalisé, désincarné, et ce, par principe et par structure. (...) L'organisation de la consommation - qui consiste à synchroniser les je au point de nier leurs différences, parqce qu'un je est une diachronie, parce que je ne peux dire je  que dans la mesure où mon temps n'est pas votre temps - est ce qui tend à annuler l'amour de soi, l'amour-propre." (17)
 
"La possibilité de l'avenir est fragile: c'est pourquoi la fin de l'avenir est possible, beaucoup plus probable que la fin du devenir."(20)
 
" La question de l'articulation du je et du nous est surdéterminée par celle de la technique. Elle l'a toujours été, mais auparavant ce n'était pas sensible. C'est devenu sensible  lorsque,au XIXº siècle, et surtout au XXº siècle, sont apparus des objets nouveaux voués à remplacer les précédents: c'est ce que l'on appelle la consommation. Actuellement, chaque jour, des centaines de brevets sont déposés à travers le monde, dont résultent d'innombrables objets nouveaux qu'il faut adopter et faire adopter. (...) Il faut que nous consommions poour que la machine économique du  nous  mondial fonctionne. (...) Spontanément, les sociétés n'ont aucun désir de nouveaux produits. En règle générale, elles veulent rester identiques à elles-mêmes - et cependant, il faut qu'elles se transforment pour survivre" (22)
 
"Si nous ne pouvons pas nous référer au même calendrier, c'est-à-dire si nous ne partageons pas un temps commun, et si nous n'avons pas une représentation commune du monde spatial dans lequel nous partageons des dispositifs d'orientation - par exemple, si nous ne savons pas lire les noms des rues, les cartes ou les panneaux indicateurs -, nous sommes étrangers. Nous ne nous sentons en familiarité avec nous qu'à lacondition d'un tel partage. Or, aujourd'hui, calendarité et cardinalité sont passées sous le contrôle d'industries culturelles devenues mondiales." (25)
 
"Passant sous le contrôle des industries culturelles, les systèmes calendaires et cardinaux sont en train de se déliter - ce qui provoque une perte d'individuation du fait de la destruction du narcissisme primordial qui en résulte." (26)
 
"Dire que nous vivons dasn une société individualiste est un mensonge patent, un leurre extraordinairement faux, et d'autant plus extraordinaire que personne ne semble en avoir conscience, comme si l'éfficacité du mensonge était proportionnelle à son énormité, et comme si le mensonge n'était le fait de personne. Nous vivons dans une société-troupeau, comme le comprit et l'anticipa Nietzsche." (30)
 
"Les industries culturelles servent à créer des marchés.  (...) Aujourd'hui cette fabrication industrielle des comportements est devenue un véritable danger: c'est un processus entropique qui soulève des questions d'écologie culturelle(...)" (51)
 
"L'exploitation industrielle du pouvoir des objets temporels finira par exténuer le désir de la conscience, fondé sur la singularité et le narcissisme en tant qu'image d'une altérité du moi."(52)
 
"Nos 'consciences' sont médiatiquement bombardées par les industries culturelles, dont les entreprises de presse inscrites dnas ce qu'on appelle 'les médias' sont de moins en moins différenciables - et l'honneur de la noble profession de journaliste se mesurera à l'avenir à l'aune de la capacité des uns et des autres à s'en distinguer." (56)
 
" Je ne peux m'aimer moi-même que dans la mesure où je me sais, et d'un savoir sans faille, absolument singulier - faute de quoi, soit je sombre dans l'angoisse et finalement le désespoir, soit je m'agglutine au troupeau. (...) Mais ce désir de rejoindre un milieu fusionnel originel est fondé dans mon narcissisme primordial, c'est-à-dire dans le savoir intime que je suis singulier, que je ne suis pas l'autre. " (58)
 
"Penser en termes de tendances, c'est penser que ce contre quoi on lutte est necéssaire. C'est-à-dire que si on lute contre une tendance, en tant que cette tendance aurait tendance à devenir hégémonique (et de fait, toute tendance tend vers l'hégémonie contre une autre hégémonie), et si on y oppose une contre-tendance, il faut savoir que la tendance contre laquelle on lutte est la condition de la tendance pour laquelle on lute." (75)
 

Semanas de Olaria

Um barreiro.JPG
Um barreiro
A terra exerce sempre uma espécie de fascínio, quer pela sua vegetação, quer pelas suas cores, quer pelo seu cheiro ou a sua textura. A terra também é detentora daquela magia que transforma o lixo orgânico, ou estrume, em terra fértil, aquela terra escura e consistente que faz crescer todas as plantas. A terra pinta e pode-se moldar. Lembro-me que, há uns anos atrás, ia apanhar rãs num charco barrento e aproveitava para brincar, com as várias cores de terra de um antigo barreiro, com o meu irmão. Utilizávamos aqueles tons verdes, amarelos e vermelhos para pintar o rosto um ao outro, fazendo as mais fantásticas máscaras cor de barros, estranhas misturas, estranho prazer de tocar uma terra viscosa, de se sujar sem ficar sujo, é isso o contacto com a terra, não suja, alimenta a imaginação.
Durante estes meses de férias, decorrem, no Centro de Artes, ao lado do Museu João Fragoso, uns ateliers de olaria para crianças, organizados pelo Atelier de Arte e Expressão. Uma tarde, quando cheguei ao atelier de olaria, vi mãos pequeninas que amassavam, esmagavam, moldavam a terra, ora cinzenta, ora preta, ora vermelha e lembrei-me que tinha chegado a estar inscrita num atelier de olaria para crianças, perto do Trocadéro, em Paris. Os objectos que resultaram daquelas sessões, que decorriam todas as tardes à quarta-feira, a tocar no barro, pouco importaram, pois não me lembro do que fiz, mas ficou a lembrança das mãos no barro, das mãos a amassar, a moldar, a quebrar e a bater no barro. Lembro-me que a experiência de estar em contacto com a terra foi decisiva para, mais tarde, moldar umas pequenas estátuas em gesso, sobre um suporte metálico, e para percorrer as catacumbas de Paris, de que havia uma entrada perto da Cidade Universitária, à procura de barro.
Lembro-me das palavras de uns amigos oleiros na Lapa, perto do Cartaxo: “O barro, há que batê-lo, há que domá-lo para que seja pasta”. Foi aí que, pela primeira vez, verifiquei que existia uma dupla relação que se estabelecia entre a matéria e o Homem, uma de força e outra de amor, ternura e doçura. Muitos escultores começaram assim vestindo a massa, a pasta e a terra com as mãos, para depois despir a pedra com instrumentos. Uma das mais belas descrições que li até agora, sobre o encontro com a terra, foi a do primeiro contacto com o barro da escultora Camille Claudel, cujas obras se encontram em Paris no Museu D’Orsay e no Museu Rodin, era irmã do poeta Paul Claudel, amiga do compositor Claude Debussy, amante do escultor Auguste Rodin, e foi uma mulher que, por ter nascido em 1864 e ser artista, foi colocada num manicómio, pela família, durante os seus últimos trinta anos de vida. Outro encontro com a terra, de que a literatura deixou rasto, foi descrito, de uma forma extremamente sensual, num livro de Michel Tournier, intitulado Vendredi (Sexta-feira). Consiste numa nova versão da história de Robinson Crusoe, pois a primeira versão marca os primórdios do Romance, enquanto género, e foi escrita pelo inglês Defoe.
Apercebi-me que a olaria não é só o momento em que as mãos trabalham na roda ou à mesa. Antes da olaria há o barreiro, o espaço onde se escolhe e recolhe o barro em função do que se quer conceber. Conta-se que antigamente havia um homem que percorria as olarias do concelho e abastecia-as com barro. Antes de ter barro pronto para ser utilizado há que prepará-lo. Cada coisa precisa do seu tempo de preparação, cada coisa tem uma idade. Apercebi-me da idade do barreiro, da idade da decantação e da idade do forno a lenha. É um mundo com as suas regras, os seus vocábulos, os seus prazeres e as suas estranhas ou maravilhosas surpresas resultantes da cozedura, para descobrir.

(Gazeta das Caldas 5/08/05)

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