Uma exposição, uma tarde...fotografias de Valter Vinagre
Uma tarde como esta, em que o frio se sobrepõe ao azul , estacionei o carro junto dos eucaliptos, enormes... Ainda o sol brilhava nas folhas cor de prata e entrei no espaço da ESAD. Determinada e segura fiz o percurso, entre seixos, até à entrada da galeria para ver a exposição de fotografias: Carta do Sentir, de Valter Vinagre. Entrei como se soubesse todos os caminhos, sem me atrasar, como se conhecesse todos os passos.
Num quadro branco, à entrada um excerto do texto que serve de prefácio ao livro . Lembro-me que as exposições organizam o seu espaço para começarem sempre por um lado, um lado pré-estabelecido, sempre o mesmo para todas, é como um código , mas não procurei saber. Deixei-me guiar. Dirigi-me para um banco, no meio do espaço, que acolheu o meu saco, enquanto me dedicava às imagens...
Viro-me e a primeira imagem que vejo é o coração suspenso na árvore e, mesmo atrás, a sombra inquietante semelhante a um corpo. Segue o tufo de erva que evoca o sexo de veludo de uma mulher, um sexo telúrico e belo e puro, ostentando aquela sensualidade que as ervas inspiram. Viro, novamente, os olhos para o coração suspenso ladeado por este tufo fértil, densamente poético. Lembro-me do percurso das imagens no livro e maior é a inquietação provocada por estas duas imagens lado a lado, confirmada pela presença do sofá desnudo. A paisagem de destroços e a colina, no último plano, seguem as curvas do sofá, como curvas de mulher. Há tantas curvas gastas neste sofá que acaba por mostrar o seu ventre prenhe e suas coxas redondas. São máculas profundas, estas manchas, quase invisíveis, que se destacam no sofá e que fazem eco ao vidro estilhaçado, como estilhaços de amor que nunca fora. Amor esmagado na terra junto das folhas de eucalipto e de mimosa, quiçá como pedaços de amor que nunca fora amor e depois do vidro frio, segue o sapato perdido na luta, perdido na fuga. Um sapato preto de mulher, entre ervas semelhantes a rosmaninho, revela os destroços da caminhada dolorosa que se confirma com a mala esventrada, terrivelmente, aberta e vazia, abandonada com tanta crueldade. É mesmo assim o fim de uma vida, de um sonho, de um amor que nunca fora amor?Regresso à mulher ausente, depois do sapato, é a mala de mão de senhora virada para baixo, esvaziada do seu conteúdo. Não queremos saber, esvaziada mesmo, a mala de mão de senhora está lá, toda aberta para o silêncio da caveira na erva e a doçura não resistiu a estas sombras de fumo. Tudo se esvai. Tudo é reduzido a cinzas. Cinzas é o que resta de amor que nunca fora amor. O tríptico das cinzas confirma o silêncio com os restos de tições, semelhantes a ossadas. Na circunferência adivinhada, que se prolonga fora da imagem, há uma história que se repete. A terra queimada, exibindo folhas caídas sobre os vestígios de um sacrifício próximo ou que avança a passos largos, anuncia o corpo queimado entre pele de árvore, cuja linha de demarcação se prolonga na fenda aberta. O horror começa com a cruz. O horror, cada vez mais delineado, segue com uma série de imagens de tamanho reduzido, onde o olho parece acercar-se do pormenor. Um marco assinala o tempo e o espaço, como uma cruz que aponta para o deíctico : aqui, que poderá ser em qualquer parte. Aqui e aqui e aqui também! Surge a boneca desmembrada, cabeça virada para trás, pendurada e de joelhos bem cerrados em posição de suplício, ladeada pelo peluche inocente, maculado de água suja que alguma vez limpou? Não. O arame farpado vem reabrir a ferida, esquartejando a boneca-mulher. Na curva do tronco está a dor, plástico e madeira corpo a corpo. Mais perto, a imagem do olho cego da boneca resiste, novamente, à doçura para anunciar a agonia das cuecas simples e brancas, pregadas ao chão, e dos colãs entre destroços. Aqui tudo acaba com as flores brancas, elas também, pureza amarrada na árvore. Como uma reiteração, outro marco anota o deíctico: aqui. Aqui onde o círculo de fogo poderia purificar, apenas restam os odores de um ritual sacrificial. As velas ainda estão a arder e nada acabou, tudo continua igual. Viro-me e vejo, num pilar, um túmulo-cama lugar de tortura. Do outro lado do pilar, como é de esperar algo, dou a volta, e surge a imagem, a primeira que não vi ao entrar, mas a primeira no livro, uma imagem a cores, poucas, mas são cores de uma cama desfeita, onde apenas a almofada esventrada esvaziada de lágrimas, de contos de amor que nunca fora ou de sonhos perdidos, e os lençóis em fuga relembram o que aconteceu ou o que começa.
Num quadro branco, à entrada um excerto do texto que serve de prefácio ao livro . Lembro-me que as exposições organizam o seu espaço para começarem sempre por um lado, um lado pré-estabelecido, sempre o mesmo para todas, é como um código , mas não procurei saber. Deixei-me guiar. Dirigi-me para um banco, no meio do espaço, que acolheu o meu saco, enquanto me dedicava às imagens...
Viro-me e a primeira imagem que vejo é o coração suspenso na árvore e, mesmo atrás, a sombra inquietante semelhante a um corpo. Segue o tufo de erva que evoca o sexo de veludo de uma mulher, um sexo telúrico e belo e puro, ostentando aquela sensualidade que as ervas inspiram. Viro, novamente, os olhos para o coração suspenso ladeado por este tufo fértil, densamente poético. Lembro-me do percurso das imagens no livro e maior é a inquietação provocada por estas duas imagens lado a lado, confirmada pela presença do sofá desnudo. A paisagem de destroços e a colina, no último plano, seguem as curvas do sofá, como curvas de mulher. Há tantas curvas gastas neste sofá que acaba por mostrar o seu ventre prenhe e suas coxas redondas. São máculas profundas, estas manchas, quase invisíveis, que se destacam no sofá e que fazem eco ao vidro estilhaçado, como estilhaços de amor que nunca fora. Amor esmagado na terra junto das folhas de eucalipto e de mimosa, quiçá como pedaços de amor que nunca fora amor e depois do vidro frio, segue o sapato perdido na luta, perdido na fuga. Um sapato preto de mulher, entre ervas semelhantes a rosmaninho, revela os destroços da caminhada dolorosa que se confirma com a mala esventrada, terrivelmente, aberta e vazia, abandonada com tanta crueldade. É mesmo assim o fim de uma vida, de um sonho, de um amor que nunca fora amor?Regresso à mulher ausente, depois do sapato, é a mala de mão de senhora virada para baixo, esvaziada do seu conteúdo. Não queremos saber, esvaziada mesmo, a mala de mão de senhora está lá, toda aberta para o silêncio da caveira na erva e a doçura não resistiu a estas sombras de fumo. Tudo se esvai. Tudo é reduzido a cinzas. Cinzas é o que resta de amor que nunca fora amor. O tríptico das cinzas confirma o silêncio com os restos de tições, semelhantes a ossadas. Na circunferência adivinhada, que se prolonga fora da imagem, há uma história que se repete. A terra queimada, exibindo folhas caídas sobre os vestígios de um sacrifício próximo ou que avança a passos largos, anuncia o corpo queimado entre pele de árvore, cuja linha de demarcação se prolonga na fenda aberta. O horror começa com a cruz. O horror, cada vez mais delineado, segue com uma série de imagens de tamanho reduzido, onde o olho parece acercar-se do pormenor. Um marco assinala o tempo e o espaço, como uma cruz que aponta para o deíctico : aqui, que poderá ser em qualquer parte. Aqui e aqui e aqui também! Surge a boneca desmembrada, cabeça virada para trás, pendurada e de joelhos bem cerrados em posição de suplício, ladeada pelo peluche inocente, maculado de água suja que alguma vez limpou? Não. O arame farpado vem reabrir a ferida, esquartejando a boneca-mulher. Na curva do tronco está a dor, plástico e madeira corpo a corpo. Mais perto, a imagem do olho cego da boneca resiste, novamente, à doçura para anunciar a agonia das cuecas simples e brancas, pregadas ao chão, e dos colãs entre destroços. Aqui tudo acaba com as flores brancas, elas também, pureza amarrada na árvore. Como uma reiteração, outro marco anota o deíctico: aqui. Aqui onde o círculo de fogo poderia purificar, apenas restam os odores de um ritual sacrificial. As velas ainda estão a arder e nada acabou, tudo continua igual. Viro-me e vejo, num pilar, um túmulo-cama lugar de tortura. Do outro lado do pilar, como é de esperar algo, dou a volta, e surge a imagem, a primeira que não vi ao entrar, mas a primeira no livro, uma imagem a cores, poucas, mas são cores de uma cama desfeita, onde apenas a almofada esventrada esvaziada de lágrimas, de contos de amor que nunca fora ou de sonhos perdidos, e os lençóis em fuga relembram o que aconteceu ou o que começa.
Ana da Palma, Caldas da Rainha, Gazeta das Caldas,18 deFevereiro 2005