Resumo de leitura de Crítica da razão negra (2014) de Achille Mbembe
A Crítica da razão negra (2014) faz parte de uma série de escritos de Achille Mbembe durante a sua estadia na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do sul. O autor traz o conteúdo para a forma como “um rio com múltiplos afluentes”(Mbembe, 2014, 9), num estilo literário fluido de leitura agradável em que as conexões intrincadas ganham sentido na sua complexidade intrínseca. O livro, traduzido do francês, publicado pela editora Antígona, está organizado em seis capítulos onde, através de abordagens cruzando várias áreas dos saberes, o autor expõe um pensamento crítico sobre “a vida, o semelhante e o dissemelhante, o excedente e o comum” (Mbembe, 2014, 21-22).
Escrever uma crítica da razão negra é uma tarefa de titã. Principalmente porque, além da erudição necessária para navegar pela história do mundo através dos séculos, implica não só questionar ideias, paradigmas, modelos, representações que envolvem a pegada persistente do ocidente, do discurso do colonizador, mas também a sua expressão profundamente masculina. Assim, em último reflexo genuíno, é um discurso – ferida-herança do pensamento ocidental – significativamente no masculino que se imiscui na escrita de Mbembe. O desconforto trazido pelo uso de um único género, muito mais do que fazer surgir a minha feminidade, trouxe-me à memória as mães que “apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, para lhes não serem retirados(...)” descritas por Zurara [1] na Crónica da Guiné (1453). Contudo, Mbembe oferta-nos sem dúvida um pensamento pleno com ideias e reflexões que estimulam tanto a leitura, como o fervilhar do cogitar.
Partindo do pressuposto - que me parece demasiado geral e até controverso e que requereria uma análise em termos de reposicionamento e reformulação do desejo de supremacia do Ocidente - de que a “Europa deixou de ser o centro de gravidade do mundo”(Mbembe, 2014, 9), o autor aborda a razão Negra, colocando-a em três momentos históricos, políticos e económicos: primeiro, do século XV ao XIX, o momento da espoliação organizada, ou a escravatura, onde o Negro, enquanto raça, é formulado como moeda de troca do capitalismo; segundo, no final do século XVIII, o momento da articulação de uma linguagem, ou a descolonização, quando o Negro se liberta e cria os seus mecanismos de liberdade com base no existente; e, terceiro, no início do século XXI, o momento da globalização dos mercados e privatização do mundo, ou neoliberalismo, onde todas as pessoas acabam por ser moeda de troca no mercado e onde já não há propriamente “trabalhadores, mas nómadas do trabalho”(Mbembe, 2014, 14), mas um Corpo a gerir. Nestes três momentos, em que um destino comum se deixa esboçar, reside o devir negro do mundo como integrando as novas relações, enquanto categoria abrangente, envolvendo a formulação de comunidades e a “construção do comum” (Mbembe, 2014, 305).
Se uma reflexão crítica da razão negra é necessária, o autor aponta umas dicas que encaminham também para uma reflexão importante sobre o pensamento ocidental no sentido em que este, partindo do ponto de vista do seu próprio espelho, sempre se desligou da perspectiva de uma co-pertença. Um dos problemas do Ocidente parece ser uma derivação de um velho mito: o complexo de Narciso. De tanto se contemplar à luz do seu próprio espelho, o Ocidente caiu no espelho onde persiste em permanecer. Dai também ser necessária uma crítica lúcida da razão branca ou da nossa “palidez mal cozida”, como formulou Sartre [2], desconstruindo a noção da cor das raças, à luz de uma amizade partilhada, como podemos entrever na recente publicação o Comité Invisível em “Aos nossos amigos”[3]. Neste contexto, para poder abordar a razão negra, o autor revisita termos e conceitos forjados e construídos no quadro das representações ocidentais, assim como o discurso anticolonialista elaborado em torno de raça/racismo, Negro, África, mas também uma noção mais complexa e fluída, visitada através da concepção do Tempo na literatura africana, como noção central ao estar e ser para o Mundo, que de certa forma se cruza com o nosso devir partilhado.
NOTAS
[1]
Gomes Eanes de Zurara (c. 1420-1473/74) foi cronista do Infante D. Henrique, de quem fez o panegírico na Crónica da Guiné (s.d, pp146-147). (s.l.): Livraria Civilização.
[2]
“Orphée Noir” (p.XI), in Léopold Sédar Senghor (2002 [1948]). Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française. Paris: PUF.
[3]
Comité invisível (2015). Aos nossos amigos. (s.l.): Edições Antipáticas.